terça-feira, 10 de julho de 2012

Crítica: Fargo


Nem só as paisagens são gélidas


Por trás da aparente simpatia e educação dos cidadãos de Minnesota, há pessoas gélidas como a paisagem da região. Ambiciosos e ligeiramente incompetentes, homens cometem assassinatos cruéis, enquanto são investigados por uma amável e determinada policial grávida. Sexto longa-metragem de Ethan e Joen Coen, Fargo (idem), de 1996, não é somente uma síntese da filmografia de seus autores.   

A película apresenta aspectos incomuns na obra desses irmãos cineastas, sendo o mais relevante deles um certo maniqueísmo. Apesar de não ter exatamente um protagonista, a policial Marge (Frances McDorman) funciona, de certa forma, como a personificação do bem e da esperança - juntamente com seu marido Norm (John Carroll Lynch). Tal aspecto fica ainda mais evidente pelo fato dela estar grávida. A forma carinhosa como a investigadora e seu esposo se relacionam, além da dedicação e astúcia da personagem, fazem com que a mesma se torne uma âncora para os espectadores. Afinal, existe alguém para o público torcer, diferentemente da maioria dos Coen, em que há uma carência de figuras que causem empatia. O filme tem poucos personagens, os quais alternam de importância durante a trama. 

Os fatos se desenrolam porque Jerry (William H. Macy) decide sequestrar a própria esposa,  Jean (Kristin Rudrüd), visando montar um empreendimento próprio com o dinheiro do resgate. De acordo com o plano, a quantia seria paga pelo sogro rico, Scotty (Tony Denman), e o crime seria executado pelos bandidos Carl e Gaer (Steve Buscemi e Peter Stormare). No entanto, o despreparo dos mesmos resulta em um  triplo homicídio, que chama a atenção das autoridades locais, em especial da policial Marge. Ao longo da história, um sequestro que não deveria causar danos resulta em diversas mortes, algumas bastante bizarras. Humilhado por todos, desde o sogro até os clientes da revenda de carros, Jerry é mostrado constantemente atrás das grades que circundam o lugar onde trabalha. Esses planos evidenciam o sentimento de aprisionamento do personagem e explicam a necessidade dele em conseguir dinheiro para ter um negócio próprio e, finalmente, deixar de ser funcionário do próprio sogro. A ideia absurda de sequestro somente evidenciada a mente transtornada do personagem, que só enxerga seus objetivos, não se importando com os demais, nem mesmo com o filho.

É difícil imaginar outros intérpretes para os personagens. Possivelmente, isso ocorra porque os Coen escrevem os roteiros já pensando em que atores escolherão. É admirável, portanto, como o sequestrador tagarela e dotado de uma fisionomia engraçada (como testemunhas salientam diversas vezes durante o filme) combinou com a figura de Steve Buscemi. Outro mérito de Fargo é o sotaque e o Minnesota Nice, denominação referente à forma polida e educada dos cidadãos dessa região. O jeito cantante de falar e o uso de expressões como a europeia “yeah”, aliada aos sorrisos e à complacência dos personagens, trazem à trama um ar regionalista pouco comum no cinema norte-americano. Ironicamente, essa aparência pacata e confiável, na verdade, esconde personagens ambiciosos e criminosos.


Logo no início de Fargo, os Coen fazem uma piada com os espectadores: surge uma legenda, na qual se afirma que o longa é baseado em fatos reais. No entanto, como fica expresso nos créditos finais, a história foi totalmente produzida pela imaginação fértil de seus realizadores. Tal situação colocou o cinema em seu devido lugar, no mundo dos sonhos e da ficção, sem compromisso com a verossimilhança. Com seus personagens patéticos e acontecimentos absurdas, Fargo é um, talvez o melhor filme de Joel e Ethan Coen. O longa-metragem conta com lindíssimos planos gerais, que demonstram o vazio e gélido ambiente de Minnessota, e uma trilha sonora pontual e eficiente. O elenco está afinado, inclusive Peter Stormare, que interpreta um sequestrador de pouquíssima palavras, mas muitas ações. Uma constante durante toda a obra, o humor diferenciado dos realizadores conduz a narrativa de forma sutil, mas clara e competente.  O longa-metragem é, enfim, uma narrativa incrivelmente bem construída, que nos arranca risadas nos momentos mais absurdas, ao mesmo tempo, que proporciona sentimentos que vão do desprezo ao afeto.


Desde Barton Fink (idem), de 1991, os Coen não atingiam tanta recursão. Nesse caso, seu destaque foi maior no Oscar daquele ano, o qual indicou Fargo em sete categorias, sendo vencedora em duas, roteiro original e  atriz (Frances McDorman). Em Cannes, por sua vez, o longa-metragem foi agraciado com a Palma de Ouro de melhor diretor para a dupla de cineastas. Curiosamente, foi devido a esse sucesso de público e crítica que a mais eficiente farsa dos Coen foi descoberta. Somente após a indicação de Roderick Jaynes ao Oscar de melhor montador, por Fargo, descobriu-se que o mesmo era uma figura fictícia. Surpreendentemente, os cineastas confessaram o fato e alegaram já terem créditos demais em seus filmes, pois já são responsáveis pela direção, produção e roteiro.  De fato, o longa-metragem é a cara de seus realizadores, desde os personagens patéticos até as situações insólitas. As estranhas ambições e os acontecimentos frívolos típicos dos Coen estão ainda mais inteligentes e envolventes. Os diretores sintetiza o humor saliente de O Grande Lebowski (The Big Lebowski), de 1998, com o tom noir de O Homem que não Estava lá (The Man Who Wasn't There), de 2001, em uma mistura inusitada e muita bem realizada. O filme, portanto, tem todos os méritos para se transformar num clássico moderno e um dos maiores filmes dos anos 90.


Fargo
Título original: Fargo
Ano: 1996
Direção e roteiro: Ethan Coen  e Joel Coen
Com: Frances McDorman, William H. Macy, Steve Buscemi, Peter Stormare e outros.
Duração: 98 minutos

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